História em quadrinhos, Representatividade e Infância.
- cultivandomundos
- 8 de abr. de 2021
- 9 min de leitura

Era uma vez, em um país conhecido por você, um menino frequentava uma escola do interior. O garoto adorava ler e tinha muitas historinhas em quadrinhos, os gibis.
Certa vez, um professor declarando um discurso de ódio pelas fanzines, que de acordo com ele, o conteúdo de violência e terror, desvirtuava os jovens, promoveu a queima destas publicações em local público ao som de gritos de protesto contra as revistas. Muito contrariado por estar participando desta manifestação, o menino carregou seus gibis que não gostava, devido às ilustrações ruins ou temas e histórias que não o agradaram e levou para a fogueira literária.
A época era a década de 50, o país era o nosso Brasil e o menino em questão: Maurício de Souza, o criador da Turma da Mônica.

Já mais crescido, o nosso menino Maurício, publicou a sua primeira revistinha em maio do ano de 1970. Desde então Mônica e sua Turma vêm encantando a todos nós. Evidentemente, toda a história do Maurício engloba diversos temas relevantes, no entanto, abordaremos um aqui em especial, a representatividade nas suas obras.
Vamos analisar o que estes personagens têm em comum:

Jeremias – Nascido em 1960, ou seja 3 anos antes da própria Mônica, este personagem fazia parte da “Turma do Bermudão” do Bairro do Limoeiro. Esta turma era constituída pelos meninos mais velhos, como o Franjinha e Titi.
Em sua primeira aparição, ele se caracterizava pela cor de pele pintada em nanquim para as publicações ainda em preto e branco, no entanto com o advento do colorido nas páginas, o nanquim (que é uma tinta preta) continuou sendo usada para caracterizá-lo. Algumas fontes sugerem ser um consequência do fenômeno blackface, que expressa o exagero dos traços negros com o intuito de estereotipar ou até mesmo, de modo velado ou não, ridicularizá-los. Tendo este intuito na época, ou não, os desenhistas demonstraram cuidado e respeito sobre a caracterização do Jeremias, adaptando ao seu tempo e às suas críticas.
Em abril de 2018, pelas mãos de Rafael Calça e Jefferson Costa, Jeremias se tornou personagem principal em um livro através da Graphic MSP. Segundo o site monica.fandom.com, “Com uma proposta diferenciada e especial, a linha Graphic MSP consiste em edições com uma história singular dos personagens do estúdio, escritas e ilustradas por artistas brasileiros consagrados e com estilos diferentes do padrão das revistas”. Nosso amiguinho Jerê ganhou destaque na publicação “Pele” envolvendo temas sensíveis às questões do racismo estrutural. O quadrinho colecionou prêmios em 2019 e conquistou o Jabuti, inédito para a Mauricio de Sousa Produções.

Todo este sucesso inspirou o lançamento no ano de 2020 de “Alma”, uma nova história envolvendo o personagem, novamente com os talentosos Rafael Calça e Jefferson Costa para falar sobre ancestralidade e racismo.

Dorinha – Uma menina de cabelos curtos e ruivos, muito vaidosa, divertida e inteligente, ela está sempre com o seu cãozinho Radar, seus óculos escuros e sua bengala. Dorinha, assim como a mulher que inspirou sua criação, é deficiente visual. Dorina de Gouvêa Nowill, perdeu a sua visão bem cedo, com 17 anos, mas não se abalou por este acontecimento em sua vida. Educadora de formação, Dorina trabalhou intensamente para a criação e implantação de instituições, leis e campanhas em prol dos deficientes visuais e pelo seu trabalho foi diversas vezes reconhecida e premiada.
Sua primeira aparição foi em 2004 em uma histórinha com o título :”Dorinha, a nova amiguinha” e desde então, encanta com as suas habilidades e delicadezas.

Papa-Capim – Ele representa os nossos povos originários, os indígenas. Vive em sua tribo na Floresta Amazônica, o menino sagaz e bondoso, sonha em um dia se tornar um líder da sua comunidade. Através do amor e respeito à natureza, luta contra o desmatamento e o aquecimento global, aliás um tema denso porém altamente necessário. Criado em 1960, leva uma preciosa lição de cuidado pelo nosso meio ambiente e ganha a sua própria graphic em 2016 com o título “Noite Branca”. No enredo, uma ameaça sobrenatural pode significar o fim de todos os membros da aldeia e o jovem Papa-Capim, tem a difícil missão de detê-la. Tudo no belo traço realista do artista Renato Guedes. O nosso querido curumim, além de ser herói da trama, traz consigo também toda a carga cultural e de costumes de um povo que faz parte das nossas raízes mais profundas.

Luca – Inspirado no vocalista, guitarrista e um dos compositores do grupo Os Paralamas do Sucesso, Herbert Vianna que ficou paraplégico em 2001, Luca é um garoto que deixa as meninas do Bairro do Limoeiro, suspirando. Cadeirante, a sua dificuldade de locomoção não limita as suas aventuras com a Turma. Principalmente quando falamos das invenções construídas pelo amigo cientista Franjinha especialmente para o Luca. Cebolinha com seus famosos planos infalíveis, se aproveita destas engenhocas para promover aquelas confusões que ele adora promover.
Nosso amiguinho estreou em 20 de Dezembro de 2004, aparecendo pela primeira vez em Mônica Nº 222 com o título Um menino sobre rodas e continua agraciando as aventuras da turminha e deixando as meninas apaixonadas.

Mônica – Ela é destemida e muito forte. Apesar de toda a implicância dos meninos e insistência em quererem ser os donos da rua, ela persiste em defender a convivência respeitosa entre todos, mesmo que para isso, ela recorra a algumas coelhadas. Apesar de a chamarem de gordinha, baixinha e dentuça, podemos observar claramente que ela tem a mesma estatura de todos de sua idade, o mesmo corpinho da maioria dos personagens e os dentinhos em evidência, se encontram também no personagem Titi, por exemplo. O que nos faz levar o olhar a construção da autoestima e a importância na defesa de si e no que acredita.
“Sou totalmente fora do padrão: baixinha, tendência a ser gordinha... O mais legal é gostar do nosso corpo, a única coisa que a gente tem na vida. Que as meninas se sintam felizes.” Disse Mônica, filha do Maurício de Sousa que inspirou a criação da personagem
A nossa amada personagem, apareceu originalmente como coadjuvante no ano de 1963, em uma tirinha no Jornal Folha de São Paulo. Maurício de Sousa iniciou a concepção da personagem após seus leitores perceberem que não existiam mulheres em suas tirinhas semanais. Em 1970, ganhou a sua primeira revista e se tornando a protagonista das aventuras da turminha.
Com a criação da Turma da Mônica Jovem em 2008, os nossos companheiros de infância cresceram e se tornaram jovens trazendo uma abordagem muito diferente do que conhecíamos. O estilo do traço inspirado na arte do mangá japonês juntamente com a temática modificada, visa agradar o público adolescente. O que tornou ainda mais evidente o lado de luta feminista da Mônica.

Todos os personagens (e ainda, muitos outros) desta linda historinha trazem uma característica especial onde podemos nos identificar. E é exatamente sobre este aspecto que gostaríamos de lançar debate: a importância da representatividade na literatura infanto-juvenil. A criança que lê e consegue se enxergar nas diversas tramas fantásticas pode ter a sensação de inclusão na sociedade real. Isto perpassa na construção da autoestima do indivíduo.
E, em uma sociedade que começa a discutir e refletir sobre todos os aspectos do complexo humano, torna-se muito natural a inserção destas realidades nas expressões artísticas em geral.
Algumas questões, apesar de já terem conquistado muita visibilidade, ainda precisam ser tratadas com muito cuidado e carinho, tornando os livros, uma ferramenta essencial para abordagem com crianças.
No entanto, ao revisitarmos a história, nos deparamos com diversos trechos temporais onde o livro foi considerado vilão por exatamente abordar ideias que feriam os conservadores costumes da época.
Especificamente, no mundo dos quadrinhos, temos uma figura que se destacou sob este aspecto. Dr. Fredric Wertham (1895 - 1981) foi um psiquiatra, pesquisador e escritor alemão. Protestava contra os efeitos supostamente nocivos de imagens violentas na mídia de massa e revistas em quadrinhos sobre o desenvolvimento das crianças.
Seu livro mais conhecido foi Seduction of the Innocent (1954), que sugeriu que os quadrinhos eram perigosos para as crianças.
As críticas do psiquiatra ajudaram a desencadear um inquérito no Congresso dos Estados Unidos sobre a indústria dos quadrinhos e a criação do Comics Code Authority, um código que regulava a publicação dos quadrinhos através do fornecimento de um selo de permissão para a publicação.
Estas declarações e atos, desencadearam protestos em outros países, o que nos leva a retornar na nossa historinha inicial lá no topo do nosso texto, na década de 50.
A fogueira promovida pelo professor do jovem Maurício de Sousa, era pautada nestes preceitos deste livro.
O selo Comics Code Authority, entre outras regras, determinava :

CÓDIGO DE ÉTICA
1 - As histórias em quadrinhos devem ser um instrumento de educação, formação moral, propaganda dos bons sentimentos e exaltação das virtudes sociais e individuais.
2 - Não devendo sobrecarregar a mente das crianças como se fossem um prolongamento do currículo escolar, elas devem, ao contrário, contribuir para a higiene mental e o divertimento dos leitores juvenis e infantis.
3 - É necessário o maior cuidado para evitar que as histórias em quadrinhos, descumprindo sua missão, influenciem perniciosamente a juventude ou dêem motivo a exageros da imaginação da infância e da juventude.
4 - As histórias em quadrinhos devem exaltar, sempre que possível, o papel dos pais e dos professores, jamais permitindo qualquer apresentação ridícula ou desprimorosa de uns ou de outro.
5 - Não é permissível o ataque ou a falta de respeito a qualquer religião ou raça.
6 - Os princípios democráticos e as autoridades constituídas devem ser prestigiadas, jamais sendo apresentados de maneira simpática ou lisonjeira os tiranos e inimigos do regime e da liberdade.
7 - A família não deve ser exposta a qualquer tratamento desrespeitoso, nem o divórcio apresentado como sendo uma solução para as dificuldades conjugais.
8 - Relações sexuais, cenas de amor excessivamente realistas, anormalidades sexuais, sedução e violência carnal não podem ser apresentadas nem sequer sugeridas.
9 - São proibidas pragas, obscenidades, pornografias, vulgaridades ou palavras e símbolos que adquiram sentido dúbio e inconfessável.
10- A gíria e as frases de uso popular devem ser usadas com moderação, preferindo-se sempre que possível a boa linguagem.
11- São inaceitáveis as ilustrações provocantes, entendendo-se como tais as que apresentam a nudez, as que exibem indecente ou desnecessariamente as partes íntimas ou as que retratam poses provocantes.
12- A menção dos defeitos físicos e das deformidades deverá ser evitada.
13- Em hipótese alguma na capa ou no texto, devem ser exploradas histórias de terror, pavor, horror, aventuras sinistras, com as suas cenas horripilantes, depravação, sofrimentos físicos, excessiva violência, sadismo e masoquismo.
14- As forças da lei e da justiça devem sempre triunfar sobre as do crime e da perversidade. O crime só poderá ser tratado quando for apresentado como atividade sórdida e indigna, e os criminosos sempre punidos pelos seus erros. Os criminosos não podem ser apresentados como tipos fascinantes ou simpáticos e muito menos pode ser emprestado qualquer heroísmo às suas ações.
15- As revistas infantis e juvenis só poderão instituir concursos premiando os leitores por seus méritos. Também não deverão as empresas signatárias deste Código editar para efeito de venda nas bancas, as chamadas figurinhas, objeto de um comércio nocivo à infância.
16- Serão proibidos todos os elementos e técnicas não especificamente mencionados aqui, mas contrários ao espírito e à intenção deste Código de Ética, e que são considerados violações do bom gosto e da decência.
17- Todas as normas aqui fixadas se impõem não apenas ao texto e aos desenhos das histórias em quadrinhos, mas também às capas das revistas.
18- As revistas infantis e juvenis que forem feitas de acordo com este Código de Ética levarão na Capa, em lugar bem visível, um selo indicativo de sua adesão a estes princípios.
Ora, de fato, existem temas que não são apropriados para crianças, no entanto, não podemos alienar completamente os nossos pequenos, e de forma cuidadosa, podemos dialogar com elas no intuito de explorar seu senso crítico sobre as coisas do mundo.
A Comics Code Authority com o tempo foi perdendo a sua força e as editoras começaram a criar a sua própria classificação etária.
Em 2011, a Comic Book Legal Defense Fund, uma associação que visava defender a liberdade de expressão nas histórias em quadrinhos, adquiriu os direitos do selo para usar em produtos licenciados.
Ao analisarmos esta linha do tempo, percebemos que tudo está tão próximo temporalmente dos nossos dias. Muito se conquistou mas segue a necessária vigília pelos direitos de todos. Atualmente, século XXI, ano de 2021, temos um presidente que julga os livros didáticos como sendo publicações a serem revisadas ao seu modo:
“Tem livros que vamos ser obrigados a distribuir esse ano ainda levando-se em conta a sua feitura em anos anteriores. Tem que seguir a lei. Em 21, todos os livros serão nossos. Feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa, vai ter lá o hino nacional. Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado... Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo” disse Bolsonaro, na saída do Palácio da Alvorada.
Exatamente, senhor presidente, são estes amontoados de coisas escritas nos livros didáticos que podem ser poderosas ferramentas para modificar a realidade do nosso Brasil. E falamos do Brasil, que abraça a todos aqueles que vivem aqui. Pois a educação é um direito citado na Constituição:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Sigamos atentos aos direitos das crianças e adolescentes, pois eles são responsabilidade de todos nós, para que possam ter uma infância digna e feliz e ainda terem o seu futuro saudável garantido.
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Um grande abraço a todos!
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